domingo, 11 de dezembro de 2011

eu em fuga

Um dos eus planejava uma fuga.
Selecionou na memória todo o conteúdo que havia apreendido nos filmes de agentes secretos. Precisava ser impecável para que o outro eu não notasse a sua saída. Muito menos as outras pessoas.
Corda, mosquetão, polia, freio, capacete com lanterna, luva, pás, cadeirinha para escalada, avião à jato, uma equipe de apoio treinada e pronta para agir.
Escalou todo o percurso em escuro profundo, superando superfícies lodosas, sinuosas, frágeis, pulsantes, até que – já exausto - encontrou uma fresta que dava para a luz: uma boca estagnada, semiaberta, hesitante, desejosa de exprimir o que as palavras raramente são capazes.
A língua, incomodada com aquela movimentação, coçou-se toda, tentou identificar aquilo que estava em cima dela, entender o porquê de estar ali, mas então desistiu.
E o engoliu em seco.

domingo, 4 de dezembro de 2011

meu herói

Não precisa ser super para ser herói. Nem ao menos precisa ser homem.
A cada dia ele é um herói diferente: Super-Homem, Batman, Homem Aranha, Flash. E tem os dias em que se veste de si mesmo.
A mãe disse que é pra dar tempo da fantasia lavar. Ele disse que ele mesmo também pode ser herói.
Dá os seus saltos giratórios, com toda a intenção de estar combatendo o mal, e sai correndo, perseguindo um inimigo que ninguém vê. Sua missão é nos salvar.
O que ele não nota é que nos salva toda vez que aponta para o céu, surpreso com as nuvens se movendo. Quando vai para o canteiro de flores e oferece uma para você, sem precisar arrancar. Ou quando começa uma frase com “você sabia que...?” para lhe trazer uma novidade.
Não é homem, nem é super, mas é meu herói.

sábado, 3 de dezembro de 2011

beatriz

Ela chegou dormindo. Coisa rara de acontecer. O mais freqüente é vê-la toda espevitada, pulando. Ou com um sorriso entre o tímido e o escancarado, escondida atrás das pernas da babá. Gosta de se esconder, de ser procurada. Ultimamente tem tido mania de pedir que lhe façamos cócegas e se contorce toda no nosso colo, rindo e ecoando.
Aquele dia, no entanto, chegou dormindo. Fui preparar um colchão para que descansasse, mas pouco depois de deitar abriu os olhos curiosos. Estava quieta a me observar.
Mantendo o silêncio, me aproximei e ficamos face a face. Fitei aqueles olhos enormes por alguns segundos até sentir, de repente, sua mãozinha no meu rosto.
Foi então que desejei pela primeira vez, com toda a força, me dedicar a crianças pelo resto da vida.

domingo, 20 de novembro de 2011

botões

Se me abrisse com zíper, qual a graça?
Na descoberta não haveria prazer algum.

Olharia para mim como a um quadro pendurado
Em meio a tantos outros
Na sua visita apressada ao museu.

Sem saber o porquê das cores lá pintadas.
De ser tinta a óleo, guache ou de amora pisada.

Não saberia da força com que foram dadas as pinceladas.
Não saberia da escolha do tema.
Não saberia da mudança de rumo.

É na abertura dos botões, um a um,
Que se desvela a beleza.

É preciso demora.
Sim, sim. São necessárias as pausas.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

verão

Há pouco me olhei no espelho e voltei ao dia em que nos vimos os dois, refletidos. Lembro de você dizendo que bonito casal fazíamos. Não era amor, era deslumbramento. Nem precisávamos ir ao mar, ele vinha ao nosso encontro. No céu, quase espaço algum sem estrelas. Mesclados os sons de onda e violão, às vezes o tremido da gaita. Risos e folhas largas vermelhas dançando. Lembro de você dizendo que meu sorriso podia iluminar o mundo. Não era amor, era o verão.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

o químico

Ele era um químico febril. Sua fonte de prazer eram os experimentos, a combinação dos elementos mais inusitados. Fazia seus testes em diversas condições de temperatura e pressão, com e sem imersão em álcool, em alta e baixa concentrações dos componentes, com ampla e restrita região de contato entre eles, havendo ou não agitação.
Extasiava-se ao acompanhar em que grau o elemento-base se modificava, o que agregava do outro, o que cedia de si. Se mudava de cor, sabor, cheiro, forma. Se passava a se comportar de modo diferente.
Tanto estímulo, tanta reação, uma hora a solução saturou. Acrescentando o elemento que fosse, o resultado era sempre o mesmo.
O químico entrou em crise, surtou. Afinal, qual seu desafio agora? Maldisse a vida, Deus, a química. Desejava desaparecer até que tudo voltasse a ser como antes.
Parou então para pensar o que exatamente o detinha ali. Se seu interesse era no elemento-base, nas suas várias possibilidades, o sentido estava em dedicar-se somente a ele, a descobrir seu estado mais puro.
Voltou-se ao béquer, isolou e aqueceu a solução até que atingisse a maior concentração. Fez também uso de alguns catalisadores, que aceleraram a velocidade do processo sem interferir na composição química básica.
A essência foi sendo desvelada e cada característica que se fazia nítida era anotada pelo químico para efeito de registro.
Com seu caderninho já repleto de anotações, sentiu-se desprendido. A qualquer momento podia recorrer à leitura do mesmo ou gravar nele novas impressões.
Despediu-se do laboratório, dos equipamentos, dos vasilhames e foi viver.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

lembranças alheias #1

Era no tempo em que a gente morava em Curitiba. Você sabe, essa cidade não dá sossego no frio. Carioca que é, ele nunca chegou a se acostumar. Sempre que me via indo pro fogão passar um café, ia junto, esquentar as mãos em cima do bule. Dizia que estava aromatizando as mãos. Vê se pode!
Hoje pela manhã me peguei fazendo o mesmo. Passei o dia cheirando as mãos.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

passantes

Um gesto, um olhar, um suspiro, uma palavra que seja.
Uma infinidade de pessoas que nos transformam e seguem ignorantes de seu feito.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Meu oratório não tem santos ou oferendas.
Oro para uma parede branca, vazia, despida.
Nela identifico deus, porque pra mim ele é isso:
o nada que simboliza todas as coisas do mundo.

terça-feira, 24 de maio de 2011

essecê

É tudo aquilo que faSCina:
O creSCimento enigmático da lua.
O naSCimento de uma grande idéia.
O grito interno do adoleSCente.
O floreSCer dos ipês na calçada.

Essecê é o sentimento imarceSCível:
Amor, que mesmo entre antíSCios
Resiste a qualquer intenção de abSCindir.

Eu convaleo de qualquer percalço
A medida em que me volto à conSCiência.
Apesar de não ser diSCípulo de algo,
Caminhos aSCéticos me interessam.
Venha o que for, cabe a mim aquieSCer.


Dicionário (Houaiss)
(1) Imarcescível: que não perde o viço, o frescor; impossível de corromper; incorruptível, inalterável.
(2) Antíscios: pessoas que moram em hemisférios opostos; habitantes de um hemisfério em relação aos habitantes do outro cuja sombra é em direção oposta aos do primeiro.
(3) Abscindir: separar com violência; arrancar, rasgar.
(4) Convalescer: restabelecer(-se), recuperar(-se), fortalecer(-se).
(5) Ascético: que ou aquele que se volta para a vida espiritual, mística; místico, contemplativo.
(6) Aquiescência: anuência, consentimento, concordância.

domingo, 8 de maio de 2011

reticente

‎"..."

há quem enxergue continuidade.
há quem enxergue três pontos finais.

quinta-feira, 24 de março de 2011

dois nós

Entre acordes e batidas
(de mão e de coração)
Tudo que guardei foi um conselho:
Amarrar os sapatos com dois nós.

Não nós dois. Dois nós.

terça-feira, 15 de março de 2011

transmutação

Ser arte era o que os dois mais queriam.
Música, dança, pintura, escultura, teatro, literatura, cinema.
Se pudesse, todas as sete em uma só.

Era sétimo andar, número sete um dois.
Sete mais um, oito. Oito mais dois, dez. Um mais zero, um.
Foi lá que se fundiram. Transmudaram-se.

sexta-feira, 11 de março de 2011

cartas



Abrindo a porta, uma desordem quase artística.
Vestígios de carnaval forrando o chão.

Um cartaz repetia como um mantra a palavra "amor".
Letras brancas no fundo preto.

Cartas espalhadas por todos os cantos
Embaralhavam-se ao tentar definir um futuro.

Uma a uma se apresentando:
seis de copas, valete de espadas, sete de ouros.

Enquanto isso, o presente se oferecia.
Distraído nas íris de nossos olhos.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

seu acordeão


Tome a mim como a seu acordeão.
Dedilhando minha pele até tirar melodia
Cadenciada, crescente, ecoante.

Aperte e solte,
Pressione e alivie,
Comprima e descomprima.

Questão de tirar o fôlego
Para deixar vir mais ar.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

giro

Liberdade é movimento.
Giro que começa só pelo gosto de girar
E no meio do caminho toma direção.
É necessário primeiro ficar tonto para depois tomar prumo.
Perder-se para achar-se.

Não me peça que gire em torno de uma só estrela.
Planeta eternamente na mesma órbita.
Sou vivo na medida em que me aventuro.


Para (e com base no) amigo Arthur Rey.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

ouvinte

Conhece o amor pelas músicas.
Tem receio de vivê-lo por si.

Na dor do outro cria o que seria a sua.
Ao som da gaita inventa-se apaixonado.

Talvez não reconheça quando finalmente sentir.
E creia ser apenas uma melodia mais intensa.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

espera


Quando esperamos por algo
Nossa vida pode se tornar só espera.

Olhos vidrados no sinal vermelho
Até que se torne verde.


Uma senhora fumava,
Uma moça alongava os braços,
Uma árvore chovia folhas secas.


O mundo gira durante a espera.

E quem sabe o verde nem venha a aparecer.

domingo, 30 de janeiro de 2011

edição

De todo o seu amor serei descrente,
Por mais que, seguro, o assuma.

Você ama o que eu vibro.
E não a fonte.

O que comunico.
E não o que sou.

Não faço questão de desmentir, porém.
É um vício fazer-me, criar a mim mesma.

Sou muito menos do que exalo.
Mas por isso mesmo, muito mais.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Degustação de domingo



Em seguida a um desentendimento, saio de casa. O propósito era trocar um par de sapatos, presente recebido em dezembro. Só hoje pude ir à loja e, chegando lá, a notícia de que era da coleção passada. Impossível a troca. Depois de meia hora de trajeto, sem ver graça alguma na tarde que em condições normais muito me agradaria, a negativa só fez intensificar o humor já azedo.

Resolvi parar na praça ao lado do Shopping para ler um pouco do livro que trouxe na sacola. Mal lida uma linha, pego o celular para olhar a lista de contatos, procurando alguém para me fazer companhia. Ninguém perto o bastante para me encontrar rapidamente. Desligo o aparelho e levanto do banco.

Casa das Rosas logo em frente. Talvez algum evento, sarau, exposição... Nada. Mas pela primeira vez vejo de verdade o jardim de rosas que rodeia a casa. Lindo. Vários arcos - por onde sobem trepadeiras floridas - descrevendo um caminho que desemboca em uma estufa. Uma fonte onde três crianças estavam a brincar de se molhar. Carrinhos de bebês, famílias, alguns casais homossexuais, casais de idosos, amigos, pessoas desacompanhadas.

Lá descubro um café muito charmoso. Sou informada pelos funcionários – simpaticíssimos - de que estão prestes a fechar, mas daria tempo para pedir algo. Capuchino gelado e torta de espinafre com ricota. Surpresa com a reabilitação de humor que o lugar me trouxe, volto a ler, aguardando a chegada dos pedidos. Deliciosos, assim como tudo por lá. Penso: quando tiver um namorado irei trazê-lo aqui. Local ideal para se ler, escrever, pensar na vida. Na parte interna do café, grupos de amigos de meia idade discutindo música popular brasileira. Fora, dois homens sozinhos - cada um em sua mesa, alguns colegas de trabalho e eu. Em baixo de um toldo, várias gerações de uma família conversando animadamente. Após prometer voltar ainda muitas vezes, saio e passo a caminhar pela Paulista com o objetivo de chegar ao seu extremo oposto.

Da calçada, pego um lírio amarelo que segue comigo até o fim. Skatistas e patinadores com suas manobras. Em frente ao Parque Trianon, barracas sendo desmontadas e o MASP decorado pela imagem de nuvens bordadas em ponto cruz. Edifícios a me lembrar o quanto da minha vida mora ali. Um rapaz cabeludo de bermuda listrada de azul a me acompanhar por alguns quarteirões.

Chego à Consolação e vejo que a flor caiu pelo caminho. Sobram os brotos. Será que abrirão se eu só colocar na água? Avanço um pouco e um homem que aparentava morar naquela calçada joga com raiva alguns objetos em minha direção. Atravesso a rua e desço uma escadaria.

Rádio ligado, sintonizado na Eldorado: Patrícia Palumbo apresentando o programa “Vozes do Brasil” com Tulipa Ruiz e seu irmão Gustavo. Vou olhando uns livros, cantando, junto, as músicas que tocam, e digo a mim mesma que assim que terminar o programa volto pra casa. Livros incríveis, preço bom, mas só dezessete reais na bolsa. Pego alguns de dezoito pra escolher e barganhar o preço depois.

Decido: Amar, Verbo Intransitivo de Mario de Andrade. Vou comprar e puxo conversa com o responsável pela venda. Pensei que fosse uma coletânea de poemas, mas parece romance... Aqui diz idílio. Sabe o que é? Não sabia. Mas Silas me apresentou tantas coisas, me encantou de tal forma, que isso passou a ter importância alguma. Contou da São Paulo da década de 70, suas transformações, a criação dos filhos, suas crenças e seu modo de viver. Ele está lá – na Passagem Literária da Consolação - todos os dias na parte da tarde. O lugar é (como ouvi de um passante) um oásis cultural. Conhecer aquele senhor, com espírito mais jovem que o meu, foi um verdadeiro presente.

Resolvo voltar pra casa. No caminho para o metrô, um tocador de acordeão talentosíssimo. Fico a escutá-lo e lhe dou os dois reais que restaram na bolsa (Silas acabou fazendo o livro por quinze). Sorri e agradece com um gracejo.