domingo, 28 de março de 2010
Liberdade
Se costuma pensar que liberdade é ter uma porção de opções. A liberdade de escolha diante de várias possibilidades.
Mas liberdade mesmo é quando não há necessidade de se fazer escolhas. É quando há uma única coisa a ser feita e você, com total consciência, se entrega a ela sem pestanejar.
Isso é o estado de presença.
Nele tudo aparece muito claro e óbvio. Nele tudo que existe, simplesmente é. Nele não há dúvida, remorso, saudade ou previsão.
Só há certeza e paz.
sexta-feira, 19 de março de 2010
Dezesseis
Aos 16 ela era apaixonada por tudo. E também por um garoto da outra classe. Ele a encantava por sua inteligência, seu mistério, sua cultura, seu jeito amigo e a segurança que passava.
Tornou-se sua amiga para ver se assim ganhava os abraços dele. Uma vez abraçada, sentia-se tão protegida e confortável, que de lá não fazia sentido sair nunca mais.
Começaram a ficar próximos, conversando por telefone e computador, um descobrindo a vida do outro aos poucos. Mas para ela aquilo estava sendo um tormento. Cada vez mais fixa a idéia de lhe contar o que sentia, decidiu fazê-lo na festa de uma colega de turma, onde sabia que ele estaria presente.
Estava com o vestido mais lindo que encontrou: um lilás manchado, cor de fim de pôr do sol. No meio da festa o viu. Aproximou-se e iniciou timidamente a fala que havia ensaiado.
Mas ele não deixou que ela terminasse, nem que chegasse a dizer com um mínimo de clareza o que tanto queria. Ele disse que precisava ir embora e desapareceu.
Foi então que começaram as lágrimas e a produção intensa de poesias de amor, mas desgostosas, sofridas. Ela fazia questão de mostrá-las ao professor de literatura, que a incentivava.
Chegaram as férias de janeiro e viajou para a casa de sua avó em Minas. Entre baladas de violão na praça e festas nas casas dos amigos, conheceu um rapaz alguns anos mais velho, com quem de cara se identificou. Conversavam por horas os assuntos mais deliciosos, escreviam juntos e compartilhavam a beleza de tudo.
Pena tê-lo conhecido já no fim das férias. Mantiveram contato por computador, telefone e cartas. Ele era romântico, a chamava de “Ma Belle” e ela se derretia. Dizia ter descoberto o homem mais especial que existira e que com ele iria se casar. Não sei se falava a sério ou não.
Voltaram as aulas e, mesmo decidida a nunca mais pensar naquele garoto, isso era algo que não se conseguia muito evitar. Ainda porque agora estavam na mesma classe.
Esse foi o semestre em que teve a sua primeira banda predileta. No seu rádio só variavam os discos “Bloco do Eu Sozinho” e “Ventura”. Foi em todos os shows que a banda fez em turnê na sua cidade, sempre junto a um grupo do qual ele também fazia parte. E isso os acabou aproximando de novo.
Um dia se fez passar por seu primo na internet e conversou com o garoto. Acabou tirando a informação que precisava: ele gostava dela! Foi assim que a menina não sossegou enquanto eles não estivessem juntos.
Depois de muita conversa, choro, dezenas de poesias e o coração ansioso, se encontraram em baixo de uma árvore com luz de lua cheia e o céu enevoado no dia 31 de julho de 2004.
Falaram de seus sentimentos e vontades e por fim juntaram suas escovas de dente.
* ilustração de Natália Lemos.
terça-feira, 9 de março de 2010
Sebo Livros - Rua Joaquim Nabuco, 410
O gato move-se logo atrás do seu dono, adentrando a loja.
O chão da calçada que acaba de deixar é de lajotas arredondadas, algumas em desalinho com relação às outras e um pouco levantadas por efeito do tempo.
Lá Franz pôs dois bancos de concreto, um em frente ao outro, para que ele e seus compadres pudessem conversar.
Há algumas semanas a prefeitura chegou e pediu que ele retirasse um dos bancos e pusesse ao lado do outro, para que os pedestres não se sentissem constrangidos ao passar por ali.
Achei uma pena. Ver os senhores prozeando era sempre muito gostoso. Dava a sensação de estar na praça de uma cidade pequena, apenas sentindo a vida passar.
Há um conjunto de arcos unidos formando um caramanchão entre o sebo e o término da calçada.
Ao passar por ele, todo coberto de trepadeiras, é como passar por um portal que transporta para um lugar sem tempo nem problemas.
O número da casa é 410, grafado com tinta azul marinho em azulejos coloridos de azul e amarelo.
Ao lado esquerdo da porta fica uma placa oval de madeira onde foi talhado o nome do estabelecimento: Sebo Livros. Nome que combina com a simplicidade e o “ser, em vez de apenas querer ser” daquele local.
Em outro plano, acima dos azulejos e abaixo da calha, há uma pequena placa retangular de metal que diz "tudo vale a pena se a alma não é pequena".
Há plantas em vasos, com flores roxas, rosas e lilases em degradê, e árvores, muitas vezes visitadas por macacos, delimitando o espaço.
Franz mora em uma casa de madeira construída em cima do sebo. Ela tem seis janelinhas quadradas que sempre vejo abertas.
Ele é uma pessoa muito agradável, daquelas que faz com que você se sinta em casa só de estar em sua presença.
Vegetariano, ambientalista, culto, simpático e bom.
Um dia fui até lá comprar um livro de presente para um amigo. Já sabia qual queria e logo ao entrar o encontrei sozinho em cima de uma mesa. Achei curioso. Mas era de se esperar de um lugar tão mágico que os livros já se pusessem à disposição dos interessados por eles ou, quem sabe, escolhessem aqueles com quem gostariam de estar.
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